segunda-feira, 9 de novembro de 2009

R-OH

O álcool. O etanol que engolimos por vontade própria. A droga que nutre a sociedade. A droga que nutre, sim. Destrói, também.
É esta mesma droga que te mantém vivo que me faz morrer aos poucos. E eu nem mesmo preciso que ela desça pela minha garganta. Basta escutar teu sofrimento. Quando saímos juntos, humano, o seu olhar de desprezo seguido por um gole de cerveja faz-me gelar. Fria, sólida, paralisada, fico te observando sem poder te ajudar. Logo, acendo um cigarro e viro um copo inteiro de cerveja. Sim, quero ver se sabes competir comigo. E sem competição, apenas com ignorância, desprezo e distância, seu olhar cruza o meu uma outra vez. E eu sinto nos lábios e no meu pescoço (e depois em meu fígado, meus rins e até nos ossos) a solidão que é ser você. Ser um de você. Ser parte tua e te ter como parte de mim.
Corro atrás do ópio. Tu passas longe. Por medo, talvez. Prefere a vida à morte. E nunca pensou na linha tênue entre uma coisa e outra. Ao menos no ópio eu encontraria o meu próprio veneno. Cansei de envenenar-me de você. Humano. Desprezível. Larga esta cara e segura a minha mão. Quem sabe alguma percepção lhe venha à cabeça e perceba. Sim, quem sabe você perceba que estamos juntos nessa solidão. Tua vida me deprime. E decerto, minha morte lhe traz pena. Nenhum de nós está então completo. Portanto combinemos: Vives por mim, que morro por ti.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Papái

Sofia sabia que seu pai nunca havia esquecido sua mãe. Besteira achar que as crianças não são capazes de perceber fragilidades dos adultos. Ela percebia muito mais que a maioria das pessoas. Amava seu pai mais que tudo, e ele retribuía sempre que podia.
Ele a levava para passear no parque. Dizia que antes dela nascer, sua mãe sempre comentava que sua pequena Sofia deveria fugir dessa vida dos vídeos e dos lugares fechados. Ele seguia todos os desejos de sua mãe antes de sua morte. Publicara seus versos e até fazia companhia aos seus pais, durante sua eterna ausência. Acabava que ele vivia mais por ela do que por ele mesmo. Seus próprios pais ficaram esquecidos. Justificava para pequena Sofia (como se ela compreendesse essas complicações que os adultos sempre arranjavam uns com os outros) dizendo que eles também preferiam que ele ficasse longe. Que nunca concordaram com seu casamento, e que eram dois "caretas" (Sofia ria) de marca maior, e que não aprovavam seu estilo de vida.
Sofia se divertia em silêncio, inventado em sua cabeça seus avós paternos os quais nunca chegaria a conhecer. Um casal de velhos loucos que destruíam as flores, quebravam bicicletas, e proibiam as crianças de mascarem chicletes. Tudo isso com olhos vesgos, boca torta, uma porção de verrugas na pele e sorrisos altos e assustadores. É melhor mesmo que papai se mantenha longe deles, pensava.
Sofia já sabia algumas palavras, e cada dia aprendia algo novo. Mas sofria. Não havia nada mais difícil para ela do que compreender as letras. Ela queria escrever cada palavra do jeito mais bonito. E sempre que a repreendiam, chorava para seu pai com um complexo de inferioridade que nenhuma outra criança jamais deveria experimentar. Papai então resolveu ajudá-la. Afinal, como uma filha de dois poetas poderia não se dar bem com palavras? Aquilo não estava certo, dizia ele.
-Diga, Sofia, o que sabe sobre acentos?
Ela olhava para seu pai com uma resposta presa nos lábios, com medo de errar.
-Sofia, me diz, você sabe desse acento aqui?
E desenhou um acento agudo num papel em branco. Ela fez que sim com a cabeça.
-Então, em qual palavra você coloca esse desenho da linha torta?
-Água.
-Sim! Viu só. Vou te ensinar mais algumas palavras acentuadas, tudo bem?
Ela então só concordava com a cabeça. Ele começou a escrever algumas palavras no papel: água, árvore, mamãe, pássaro, nenê, sábado, maçã, pêssego, idéia. Deu o papel pra ela e deixou que ela ficasse lendo e relendo. De repente, resolveu falar algo.
-Então, o que achou das palavras?
Sorrindo, Sofia disse que gostou.
-É, Sofi, pensa só... os acentos servem como pequenos enfeites às palavras.
Ela encontrou então o que precisava: uma forma de enfeitar as palavras. Mais liberdade, acreditava. Outras aulas foram dadas, do mesmo modo, pelo seu pai. Ele era um herói, claro. Tão facilmente ele lhe acordava para o lado mágico das palavras, que nem as correções da professora a chateavam mais. Ele era lindo, porque nunca deixaria mamãe desaparecer, porque colhia flores pra Sofia quase sempre, porque a ensinara a andar de bicicleta, porque ele a ajudou a dar sua primeira estrelinha, porque ele fazia tudo desse jeito mágico e fácil que tanto agradava Sofia.
Um dia, sua professora pediu pras crianças que escrevessem alguma coisa sobre alguém da família. Sofia não tinha dúvidas que ia escrever sobre seu pai. Escreveu então, entre palavras tortas e erros perdoáveis: "Papái ele merece todos os asentos do mundo"

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

D. Vontade e d. Lágrima

Um belo dia, a Vontade de Chorar se separou da Lágrima Real. O problema era a saudade que a dona Vontade sentia da dona Lágrima. Quanto mais tempo dona Lágrima ficava longe, mais dona Vontade suspirava de solidão, e gritava por Lágrima em todo lugar. A Lágrima não vinha. Apenas vez ou outra resolvia fazer uma ligação curta pra casa. Mas essas ligações curtíssimas não acalmavam dona Vontade, que ficava ainda mais aflita. "O que acontece comigo, que não consigo recuperar minha companheira que outrora fora tão fiel a mim?"
Pobre dona Vontade...

E o pior é que agora preciso ficar suportando suas lamúrias dentro de mim, e sofro junto. Mas relaxe, Vontade, imagino que eu não vá te largar tão cedo.

Aos pés do espelho.


Deixe-me fingir minha sanidade. Não tem consciência alguma do que me fez, não é mesmo? Você, com essas ilusões carregadas de realidade... Você, que me enganou. Como um cego que cai num buraco, não podia enxergar suas falsidades, tinha certeza que ali havia mais que vão. Mas não. Não. E agora, ainda reclama quando te olho no rosto e digo que não lhe quero mais ao meu lado - quando ambas sabemos que isso não passa de uma tentativa estúpida de imitar você? Deixe-me fazer do jeito que quiser, deixe-me fingir que você não está mais em mim. Pois não te quero. Você me lembra pessoas que não gosto. A obviedade as vezes me faz pensar que, perto de você, me tornarei uma delas. Fria e esquecida. Largue de mim pois já percebi que você não presta.

Respira e solta.

Chora, encolhida.

Volta-se novamente ao espelho


Porque choras comigo?

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Sem título.

-Obrigada, viu?

E então saiu do táxi. Dirigiu-se para o portão do apartamento, mas parou. Não dava mais para andar, suas pernas se moviam batendo os joelhos, o que lhe proporcionava uma dor aguda, talvez inexistente. Só sabia que não dava mais. Sentou-se. Pegou sua bolsa e revirou-a. Suspirou quando finalmente encontrou seu maço de cigarros. Estavam amassados e meio sujos, fazia tempo que não fumava. Mas agora parecia quase essencial. Pena que o cigarro lhe trazia tantas lembranças, boas e ruins. Ela era sempre muito nostálgica, costumava viver no passado, mesmo.

Sentia em si todas as peças de Shakespeare amontoadas, comédias e tragédias. Principalmente as comedias em que ela era o palhaço. Quanto às tragédias, guardava para si: Aquelas mortes repentinas, e os amores destrutivos. O que lhe afligia, no entanto, era sua estupidez. Não a estupidez que sabia existir. E sim aquela que imaginava que percebiam nela. Aquela que saia dela sem querer, a fim de esconder a estupidez real. O que é real, afinal?

Aquelas pessoas no bar eram reais? Será que Gustavo estava mesmo tão feliz com aquela sua namorada controladora e intolerante? Nadia se preocupava com isso. Gustavo era seu amigo a tempos, sem motivo. É. Sem motivo algum. Afinal, Nadia nunca se sentiu parecida com Gustavo em quase nada. Quando Gustavo a dizia que eles eram amigos assim justamente por todas as semelhanças que tinham, Nadia ficava calada. Talvez, diferente dele, ela nunca achou que encontrar semelhanças em alguém é o que fazia a grande amizade. Na verdade, Nadia tinha perfeita consciência que eles só continuavam amigos graças à paciência dela de suportar exatamente as diferenças. Prova de amor que nenhum par de amigos conquista fácil quando as semelhanças chegam em demasia.

Mas cansara-se. Não aguentava mais vestir-se e agir conforme um grupo. Cansara-se das pessoas do bar. Nadia não dava mais ouvidos pros mini-dramas-amorosos de Renata com a namorada. Ela se irritava profundamente sempre que Rafael fazia mais uma daquelas piadas imbecis e bobas que todo mundo já conhece e não cansa de repetir e de rir. De novo, e de novo. Mal suportava Juliana falando do quanto tem que estudar, e do quanto odeia tudo e todo mundo. O que fizeram pra ela? NADA, repetia Nadia na sua cabeça. Juliana era uma boba. Boba, sim, pois só sabe reclamar e tem tudo o que quer, sempre. E Gustavo... ah, e agora Gustavo arranjara essa namorada que irritava Nadia apenas com a presença.

O céu agora estava tão bonito. A lua brilhou dentre as nuvens escuras da noite. E Nadia sentiu-se livre. Quase esqueceu seu ceticismo e tentou conversar com deus. A luz do luar estava mais dourada do que era de se esperar. E a enrolava. Nadia parou de pensar por um minuto. Sentiu-se livre, pra ir até onde quiser. Reabriu os olhos quando um homem com um cachorro passou por ela com um sapato pesado. Então pensou que ela mesma estava se acorrentando. Ela mesma estava se fazendo dependente de pessoas que não a deixavam feliz. Ela que deu valor a exatamente essas pessoas. E por quê? Não podia responder direito. Talvez viver de aparências fosse inicialmente mais simples. E só com o tempo é que pôde aprender que também complicava mais ainda as coisas. Citando Fernando Pessoa:

"Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me."

Esse era o poema preferido de Nadia. Essa parte, especialmente, repetia para si mesma agora. Perdera-se. E alguns caminhos não teem volta. (será?)

-Bom, pelo menos ela pensava assim na hora... Eu decidi não interferir com minha opinião.Fazer isso seria como trair a veracidade dos fatos. E Nadia é tão real quanto você. E merece ter seus próprios pensamentos e princípios. Aliás, você também.

Foi aí que pensou que talvez todos no bar estivessem até mais perdidos do que ela.E naqueles dois anos que conviveu com eles... surpreendera-se: Não fazia a menor ideia de como abordar esse assunto com algum deles. Que grande amizade, pensou.

"Você precisa se perder
Para se encontrar"

Então, Nadia foi atrás de tudo o que gostava de verdade, foi atrás de livros que sempre teve vontade de ler e ligou pra pessoas que há tempos não ligava. Decidiu nunca mais prender-se a ninguém, além de, quem sabe, um futuro grande amor. E mesmo assim, tomaria cuidado pra não pisar em falso. Amava seus amigos do bar. Amava-os mais do que eles podiam imaginar. Afinal, largou sua vida no canto pela presença falsa de cada um deles. E não deixou de sair com eles. Na verdade, tudo ficava melhor agora quando todos estavam juntos. Pois Nadia tinha na cabeça que talvez, apesar de qualquer aparência, ela fosse a mais livre dali. E em algum momento, esperava, eles se dariam conta da prisão a qual estavam se guardando.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

-Daniel, sabe aqueles sonhos que te dão vergonha de ter sonhado?
-Hahaha, como assim, Clara!
-É, é! Você sonha com o rosto de alguém e depois meio que perde a vontade de ver essa pessoa pra sempre, porque por mais que tenha sido apenas um sonho, você não aguenta encará-la sem lembrar de tal quimera?
-Hum... sei sim como é.
Ela sentia um pouco de descaso na sua voz, e ficou chateada que ele não a ouvisse curioso. Resolveu continuar.Estava ansiosa e muito angústiada, e na verdade nem se importava muito se ele a escutava com descaso ou não.
-E é engraçado, porque de repente essa pessoa te manda um e-mail, e você fica feliz sem saber porquê. Por que.. se fosse como no sonho, você teria motivos pra se sentir feliz. Mas a realidade depois aparece como uma palavra fria e te derruba de levinho, e aos poucos você dá ainda mais força à ilusão. À fim de esquecer a realidade que machuca.
-Fico tentando imaginar quem foi que te deixou assim...
-Isso pouco importa. O que importa, Daniel... É que se a gente deixar a ilusão se dar como certa, tudo acaba ficando pior ainda. Mas...
Não conseguia encontrar mais palavras para dizer. Era complicado, e talvez Daniel não entendesse nada.
-Mas... ?
-Mas não há verdade e mentira, cheguei à essa conclusão. Nossa alma, nosso espírito, ou seja lá o que for... Trai fácil. Às vezes trai à vontade sem nunca ser descoberto. E me pergunto... porque ainda nos preocupamos.
-Nos preocupamos?
-É sim.
-Clara, nos acostumamos com isso, sabe? Não queremos ser traídos num sonho, mas isso não podemos controlar. Agora, ser traído no que dizemos "realidade". Sei lá... Pode-se controlar, e esperamos que se controlem, entende? Eu espero isso de você, assim como você espera de mim.
-Daniel...
-O quê?
-No sonho, eu sabia que tinha um namorado. A diferença é que lá, a oportunidade bateu à minha porta.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Volte. (Mas pra quê?)

Tudo que quero é que ela chegue logo com a comida. Quero que ela venha de uma vez por todas. A culpa não é minha por tudo que fiz. A culpa é minha pelo que não fiz. Reconhecer o erro é difícil demais. Nunca fui de abaixar a cabeça e me desculpar, me desculpe por isso. Mudo agora, pois imagino que não tenha outro caminho. Por favor, volte. Não me importa pra quê voltarás. Não ligo. Só volte, mesmo que seja para me dar um tapa e um abraço de despedida. Sim, por favor, pelo menos um abraço de despedida. Lembre de tudo que também já fiz por você, e me presenteie com um abraço por isso, por favor.

Às vezes rio de tudo que me diz. Desculpe-me você, por não conseguir acreditar em mais nenhuma palavra do que diz. Não que seja falsidade. Acredito na sua verdade. Mas sei que sua verdade não é essa, por mais que você quisesse que fosse. Me diz, o que escuta agora? Estou voltando com a comida. Escuta meus passos da subida? Vou subir não pra me despedir, vou ficar. Amo-te, não se esqueça. Subo pra te fazer perceber, mais cedo ou mais tarde, que quem quer se despedir é você.

domingo, 23 de agosto de 2009

"Que onda que dá..."

Já fui para lá com essa expectativa. Cheguei e a vi cantar. Quando ela entrou no palco, linda, sua voz saia de sua boca sem pressa. Ela cantava calma, com seu jeito doce. Fitei-a por um momento, pedindo em silêncio que olhasse para mim de volta. Olhou. E por menos de um segundo. Imagino que ela ficou desconcertada, que tem alguém a esperando do outro lado do palco, e por isso ela virou os olhos tão depressa. Eu deixei-a confusa. Sim, foi isso. Ela olhou para mim e me sentiu, como eu a havia sentido. E por mais que tentasse resistir, tenho certeza que ela me observava com os cantos dos olhos a todo instante. Eu, agora no alto, observando tudo de cima, de fora... Quase podia tocar o nosso amor. Quase.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

"I'm a pretty impossible lady to be with..."

Flávia fugia. Ela fugia de seus amores passados com um carinho calmo. Não foram nem mesmo grandes amores, ela não permitiu que se tornassem. Ela não servia para ninguém, pensava. Não gostava de ficar no mesmo lugar nunca. E quando estava em casa, gostava de escrever algumas letras de música. Ela fugia também de seus amigos. Os conquistava e deixava-os, como num jogo. Ela só queria provar o gostinho bom do que aquilo poderia lhe trazer antes de se acabar. Ela era destrutiva. Ela conquistava olhares e corações no meio do caminho, e lançava olhares de volta, livre. Adorava se sentir assim. Sentia-se por cima, melhor do que todo mundo. Mas é claro que escondia inclusive de si mesma sua prepotência. Descobriu-se fora do controle da situação quando, ao abrir a janela do seu quarto, avistou André, com uma outra menina. Mais nova que ela, provavelmente. Mas não muito. Flávia a conhecia, sempre a viu passeando ali por perto, mas sempre sem ninguém com ela. Ver André assim, com um outro alguém que não ela, atingiu Flávia inesperadamente. André sempre foi perdidamente apaixonado por ela, e ela se sentia parte dele. Ele a deixando... Era como se parte dela também fosse embora.

Foi até o banheiro, maquiou-se e colocou uma roupa colorida e um tênis surrado marrom. Colocou seu violão nas costas, e saiu. Já fora de casa, ia andando sem ter pra onde ir. Tentava adivinhar para que lado ir, com sua intuição. Conforme a energia que a rodeava, ela deveria virar para a direita. Deveria caminhar até a rodoviária, e pegar o ônibus azul. Adormeceu. E aí, encontrou André. Ele chegava e a beijava e, pela primeira vez, Flávia correspondia. Abria seu violão, e tocava uma música nova a qual não identificava. André a acompanhava, na gaita. E num desejo imenso, Flávia doou seu corpo pela primeira vez. Deixou-se entregue. Tudo e qualquer coisa que já os tivesse chateado, qualquer decepção, qualquer distância... Parecia não existir mais.
Voltou para casa com a respiração lhe faltando. Fazia força para conseguir andar. E ao deitar-se na cama, sentia-se sem defesas. Como se um sonho a tivesse vencido. E o fantasma do que aconteceu a perseguia. A grande descoberta dela era essa, a possibilidade de sonhar e guardar dentro de si o que não permitia levar para fora. Recolhida na cama, abraçou-se. Amaria por dentro, escondida, para sempre. Não só André, mas também todos os outros que já passaram por sua vida, e outros que ela ainda estava por encontrar. E por fora permaneceria sempre só, porém completa, preenchida por seus sonhos.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

À Alice pertenço, e ela à mim.

Vontade de se sentir integrada sempre foi a única coisa que nunca lhe faltou. À Alice, sempre faltou tudo. Nunca tinha dinheiro suficiente, conhecimento suficiente, talento suficiente... Faltava-lhe contentamento. Faltava-lhe inclusive alegria e tristeza. E talvez por nunca ter aprendido essa coisa de sentimentos e estados de humor muito bem, faltava-lhe até a saudade que essa falta poderia causar em alguma outra pessoa. E para o mal de Alice, o que mais lhe faltava era amor, dela e para ela. Falta não sentia. Pelo menos era o que parecia.
Vontade de fazer parte. Ela gostaria de olhar pro mundo e se sentir uma peça do quebra cabeça. Ela pensava que todos os outros pareciam ser tão essenciais...

Talvez um pouco de inveja? Talvez... Mas eu, pessoalmente, não achava que podia ser isso. Eu com meus sentimentos a flor da pele, bem diferente dela, tentava analisá-la. Achava-a incrível. Como podia? Aquela mulher tão atraente, pelo menos para mim, ser assim tão distante? Eu várias vezes duvidava da sua existência. Mas como? Eu sempre a encontrava, em tudo que é canto, não importava onde ou quando. Nem sei se algum dia ela se deu conta da minha presença, talvez lhe faltasse também percepção. Enfim, eu a observava como se ela pertencesse a mim. Incrível como a gente é capaz de criar esses sentimentos possessivos dentro da gente. Quero dizer, a gente, menos ela. Alice não podia ser possessiva, pois a ela nada pertencia.

Eu a observava com pressa de compreendê-la. Mas de nada adiantava. É claro que ela, sendo Alice, nunca facilitou minha busca. E se facilitasse, eu não estaria mais a procura, se o que me faz ir atrás é justamente essa paixão pela impossível esperança de completar a tarefa. Percebo-me louca correndo atrás de alguém que nem mesmo me vê. Ela some por uns tempos, e quando me dou conta me sinto tão culpada... Como se de certa forma ela sentisse falta da minha preocupação, do meu olhar. Será? Será que consegui que ela sentisse minha falta? Ora, mas quem sumiu foi ela! Como alguém que nada tem, pode dar tanta coisa a um outro alguém? Como será que ela consegue me dar tantos presentes... Essa vontade de viver nem que seja pela graça do mistério, nem que seja só por ela.

Ela conseguiu o que queria, mesmo que tivesse sido inconscientemente, ela conseguiu. Agora ela tinha um papel indispensável para mim, já não imaginava minha vida sem ela. Não a amava. Necessitava. A simples existência dela era que me mantia em pé. E pensei em revelar-lhe que encontrei seu papel indispensável, sua importância em todo o quebra-cabeça, que por mais egoísta que possa parecer, era a minha própria existência. Mas não, percebi que se o fizesse, estaria destruindo sua busca, que era como a minha. E se fosse tão forte quanto, ela poderia até cair, como eu cairia. E como também cairia, caso ela caísse. Mas nada em mim tira a satisfação de vê-la com seu desejo cumprido, por mais ignorante que ainda a quisesse manter. Obrigaria-me a tê-la sempre comigo, pois me senti também responsável por sua vida como ela se tornou pra mim. Quanto a mim, e o resto da minha vida... Existo? Bom, o que posso dizer? Criei-me inteira para salvá-la.

É difícil.

É difícil. É difícil quando você olha pra trás e percebe que tudo em que acreditava se foi; que aquele amor, por mais perto que esteja, está escondido e você cansou de procurá-lo. Achou outros objetos não tão incrivelmente fascinantes no meio da procura, mas que lhe trouxeram uma curiosidade... Melhor do que aquilo que é certo. Sinto-me assim, deixando de leve o mundo longe das minhas mãos, graças ao encanto de uma borboleta. Eu tinha o mundo, imaginava-me feliz. Até que levantar, e vê-la, tornou-se um tormento. Não queria que voltasse para casa; cada momento só, era incrível, fazia coisas incríveis, que não mais me permitia. E a culpa não era dela. Era de dentro de mim que ela não permitia, eu criei aquilo, junto com a borboleta. É difícil pensar no que as pessoas vão pensar (Imagina! Se já é tão difícil pensar no que as pessoas estão pensando!). Tento não ligar, não preciso de ninguém. Eu sempre estive sozinha, essa é a verdade. Tudo que tive e tenho (?) veio de mim, eu criei. Mas ainda assim, é difícil. É difícil descobrir o que é certo, o que devemos fazer... Eu não sei. Sento no canto e desabo... Choro como nunca chorei antes, estou no chão e choro sem motivo, ou com motivos demais. Não sei nem se estou triste. Mas sei que preciso me levantar e continuar forte, a vida não é mais fácil como era. Aconteceu devagar, mas aconteceu. Aconteceu comigo como acontece com todo o resto, perdi minha exclusividade. Desapaixonei. Cansei-me. E vou largar essa vida, vou atrás da borboleta, já que sei que ela não virá atrás de mim.

Penso nisso por uns minutos e encanto-me com a idéia, vejo todo meu futuro feliz com minha busca incansável e atenta. Mas a vida me prega mais uma peça e me manda lembranças, e eu lembro. Agora tenho na cabeça tudo que veio antes da minha busca que ainda não aconteceu. E olho pra isso tudo com tanta indiferença, até com certo asco. E me vem uma vontade de maltratar a vida que já me maltratou tanto. Criaria um ciclo vicioso, e eu e a vida entraríamos nessa guerra uma querendo atingir à outra. Não. Preciso largar esse ciclo desde já, parar de brigar com a vida, e deixá-la dar as caras e pedir desculpas. Vou ali comprar pão. Decido fazer um lanche gostoso com maionese e orégano; ela ficará tão feliz, penso. E me dói, me dói perceber que a borboleta passou pela rua e provavelmente nunca mais a verei. Sinto-me uma traidora dentro de um romance escondido com uma borboleta azul que agora sobrevoa todos os meus sonhos. E continuo, continuo, sem mais brincar com a vida. Entramos num estágio de compreensão mútua, tento entendê-la ao invés disso. Eu preciso continuar em pé e lidar com as coisas como são. Mas juro, ah! Juro... Se a minha borboleta passar pela janela uma segunda vez, despeço-me da minha vida e corro atrás da dela.


Foto: Mauricio Kubo

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Todo o tempo do mundo

Ela pedia mais tempo. Ela queria mais tempo, e precisava disso. Um tempo a mais, um só, talvez a saciasse por completo. Ela já não via sentido nas determinações do relógio; 5 minutos nunca passavam na mesma velocidade. E houve frações de segundos que duraram por muitos meses dentro de seu corpo, escondidos. Sendo assim, não sabia porquê não podiam liberar mais algum tempo. Qualquer tempo, um só. Ela só queria um pouco de tempo a mais do que os demais. Um tempo pra se isolar, um tempo só dela. Um tempo que ninguém mais teria, único. Um tempo em que tudo parasse, só ela continuasse. Na sua cabeça, havia a ilusão de que, se conseguisse um tempo menos gasto, mais leve, sozinha lá, ela conseguiria ver tudo. O completo, aquele todo que fica dividido em milhões de cabeças pensantes, estariam lá só pra si, por um tempo. Um tempo que por mais mísera fração de segundo representasse, seria para ela todo o tempo do mundo.