terça-feira, 29 de abril de 2008

O telefone, as uvas e o scarpin

Ao chegar, tirou aquele scarpin desconfortável e colocou uma camisola de seda lisa e macia. Com os pés nus, pôs-se em pé no chão. Que sensação diferente da que sentira durante os últimos dias! Os pés nus lhe traziam um prazer que nenhum salto alto jamais poderia substituir. Nessa hora, se perguntou por que ainda tinha aqueles 20 pares de sapatos no armário. Ela sentiu vontade de voltar à fazenda da sua avó, a qual não visitava há mais de oito anos. Tal momento nostálgico fez com que ela se lembrasse das correrias naquela grama confortável. Que saudade, ah, que saudade!
Saudade não serve; saudade não satisfaz; saudade não dá dinheiro. Foi aí que ela deixou a saudade de lado, com um “foda-se” bem gesticulado, e caminhou até o telefone. Ela bem sabia que ele não atenderia. Mas não custa tentar. Discou seu número pela décima vez naquela noite.
Que erro! Ao ser ignorada mais uma vez, sentiu-se bem pior. Talvez devesse dar mais ouvido ao seu orgulho, e aprender a dizer “não” de uma vez. “Se você sabe que alguém vai te ignorar, nem puxa papo. Porque senão você acabará se sentindo pior, sua burra.” Ditou a si mesma sua nova regra. Com quem ele estaria? Ah, nunca descobriria, no meio daqueles mistérios que ele adora esconder (dela). Sentia-se injustiçada e enganada. E num momento desses, não dava mais, entregou-se ao álcool.
O vinho. Ah, que maravilha que é o vinho. Esse sabor... hummm. Sentou-se na cama, com uma garrafa de vinho argentino na mão. Sentia o sabor da uva, e, lentamente, o álcool foi liberando sua emoção. Uma lágrima foi derramada, seguida de várias outras.
Só quando o telefone tocou que ela foi perceber que havia terminado com a garrafa inteira. Ela foi atender de imediato. Talvez fosse Álvaro, se desculpando. Seu coração já ia se enchendo com uma emoção bêbada de uvas, quando ouviu pelo telefone uma voz feminina. Lorena estava nervosa. E repetia sem parar que ela deveria ir se encontrar com o Daniel no escritório o mais rápido possível, pois havia um problema com a roupa que ela (Lorena) teria de usar na passarela no dia seguinte.
Sua cabeça zuniu. Não sabia se podia ir atrás de Daniel daquele jeito. Foi até a cozinha e se entupiu de água. Correndo, foi ao seu quarto e vestiu um vestido xadrez com um chapéu militar. E, com um colar gigante pesando o pescoço e um cinto marcando sua cintura, olhou para o scarpin jogado no chão. “Não, não combina.” Pensou. Colocou então uma bota com salto, e foi.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Questão de percepção.


-Ei, sinhora. Qué que eu limpe as janela do carro pr'ocê?
Adriana segurou-se para não ser mal-educada. Não se importava em ser abordada por um flanelinha na rua, mas erros de concordância gramatical numa frase a irritavam profundamente.
-Gostaria que você as limpasse sim, obrigada. Mas posso lhe chamar atenção numa coisa?
-Que quié?
-"Quer" é verbo no infinitivo, terminado em "er", e o "erre" deve ser pronunciado conforme as formalidades da nossa língua, o português, sabe? Você também deve ficar atento quanto ao uso do plural. Deve colocar o "esse" no artigo e no substantivo, para ficar certo, entende? Senão não há concordância! Outra coisa, é extremamente mal visto o uso de "ocê"; quando se mistura com o "pra", então... Olha, a pronúncia é tão importante quanto a escrita. Para causar uma boa impressão, é imprescindível falar bem e corretamente. Juntar palavras precipitadamente, cortar letras, ou a falta de atenção com a concordância em uma frase são erros gramaticais terríveis, mas que podem ser consertados com um pouco de esforço.
O flanelinha olhava para Adriana perplexo, mas parecia não ter absorvido nem metade do que ela havia dito.
-Muito obrigado, senhora - Disse ele tentando não errar - Será que você...
Adriana o interrompeu.
-Se te desculpo?! Mas é claro que sim! Afinal, sei bem que a culpa não é sua, e sim da falta de escolas públicas de qualidade nesse nosso país...
-Muito bunito isso. Mas eu ia é preguntá si ocê pudia me arranjá cumida. To com uma fome...