domingo, 1 de junho de 2008

Uma voz texturizada.

Sentiu-se contente por ter encontrado tamanho talento enquanto andava pela rua. Aquela menina teria no máximo uns oito anos, imaginou. Ela cantava como um pássaro preso, triste. Nunca imaginou que uma criança pudesse sentir tamanha emoção, e transformar em algo tão impactante. Virou-se de frente à ela, que não estranhou, e continuou a cantar, com a cabeça virada para a grama do chão, e as mãos brincando com um galho de árvore distraidamente.
-Onde aprendeu a cantar assim, desse jeito tão lindo?
Ela se assustou, e o galho caiu de suas mãos. Não se levantou, só olhou para cima com seus olhos grandes. Quando observou Regina, acalmou-se. Afinal, Regina era uma moça aparentemente bem normal, não tinha do que correr.
-E tem como?
Regina deu um sorriso grande à resposta da menina
-A aprender cantar? Sim, claro.
A menina deu um sorriso curto, e virou a cabeça para a grama novamente. Ela agarrou os galhos, e começou a esfregá-los um no outro. Regina abaixou-se, à altura dela.
-Você não vai mais cantar?
A menina olhou bem para os olhos de Regina.
-Quem é você?
-Sou só alguém que passava por aqui, e se apaixonou pela sua voz. Você não devia desprezar uma fã.
A menina virou o rosto, evitando o olhar de Regina; e levantou-se em direção à porta de sua casa. Regina ficou tão desconcertada, que não se moveu. Ficou sentada na calçada, pensando que havia assustado a menina do modo o qual chegou. Começou a olhar para a grama, colocou sua mão em uma das folhas e sentiu a aspereza, depois forçou a mão para baixo e sentiu sua maciez. Seu tronco lentamente deixou-se deitar ali mesmo. Da cintura para baixo, cimento; da cintura para cima, a terra nua a carregava. Fechou os olhos, e ficou ali, sentindo o sol queimar sua pele.
-Licença, senhora. Minha irmã contou que você veio falar com ela e...
Era a voz de um homem, um homem jovem. Regina abriu os olhos e logo levantou-se.
-Só comentei que cantava muito bem. Eu estava passando e a ouvi.- como ele permaneceu calado, Regina continuou - Já pensou em desenvolver um conhecimento musical para ela? Talento asseguro que ela tem.
-É, ela sempre gostou muito de cantar... Mas não acha que está exagerando?
-Exagerando? Sou professora de canto.
-Professora? Nossa...
-Qual é seu nome, rapaz?
-João, e o seu?
-Regina, prazer.
-Prazer. Espera que eu vou chamá-la pra vir pra cá.
Regina observou-o ir até a porta, e chamar por Laura. Logo depois apareceu com a menina do lado, dessa vez ela olhava bem para Regina, e parecia envergonhada pelo último encontro entre as duas.
-Seu nome é Laura, não foi o que ouvi?
-É sim.
-Você gosta de cantar, seu irmão me falou.
Laura então só concordou com a cabeça.
-João, seus pais estão em casa? Gostaria de sair com vocês para conversarmos. Laura, gostaria que eu te ajudasse com algumas aulas de canto?
Laura não pôde esconder o sorriso.
E assim Regina foi com Laura, João e Denise (A mãe deles) a um lugar onde podiam se sentar, e conversar. Denise não cansava de dizer o quanto se sentia surpresa, e orgulhosa. Laura passou a observar Regina, mas continuou calada na maioria do tempo. Regina prometeu à família aulas gratuitas especiais à Laura. Acreditava de verdade que com o tempo, ela só viria a melhorar mais e mais.
Denise convidou-a para ir a casa deles no dia seguinte, para ouvir Laura. Laura animou-se timidamente, via em Regina uma possibilidade, gostava de sentir aquilo. Resolveu então passar a noite treinando. Escolheu a roupa que ia usar, e dormiu escutando um cd antigo de uma cantora francesa que sua mãe guardava na prateleira. De manhã, sua mãe a ajudou a escolher uma boa música. Juntas decidiram pela voz suave da Marisa Monte cantando “Vilarejo”. Enquanto isso, Regina guardava na memória a letra nada grandiosa de uma música infantil que Laura transformara com sua voz no dia anterior.
Quando Regina chegou, Laura quis cantar logo. Regina conseguiu se lidar bem com a timidez dela, dessa vez, e tirou uns bons risos daquele rostinho angelical. E quando Laura cantou, Regina deixou uma lágrima discreta cair. A voz inocente e bem afinada de Laura a fazia sentir toda a essência da letra com muito maior veemência.Tocava dentro dela, sentia-se abraçando a canção, pois cada nota penetrava sua mente. Foi nessa hora que João e Denise prestaram atenção. Foi a primeira vez que conseguiram reconhecer o talento da mais nova da família. Para você sentir algo, deve estar livre para que isso te conquiste. E qualquer um que fizesse isso, facilmente se apaixonaria por Laura.
Foi aí que se lembrou da primeira coisa que Laura havia dito à ela “E tem como?”. Não, não havia como. Laura não podia aprender a cantar porque inclusive ela mesma já sabia do seu talento. Ela nasceu com isso dentro dela, e sentiu-se segura para mostrar isso, quando finalmente percebeu uma oportunidade para se libertar. Regina soltara o pássaro da gaiola, que agora cantava feliz, e sem desafinar.

3 comentários:

Anônimo disse...

Perfeita sua narrativa!

Inventário Cultural disse...

Muito bom mesmo.

Anônimo disse...

Amei. =)