sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Papái

Sofia sabia que seu pai nunca havia esquecido sua mãe. Besteira achar que as crianças não são capazes de perceber fragilidades dos adultos. Ela percebia muito mais que a maioria das pessoas. Amava seu pai mais que tudo, e ele retribuía sempre que podia.
Ele a levava para passear no parque. Dizia que antes dela nascer, sua mãe sempre comentava que sua pequena Sofia deveria fugir dessa vida dos vídeos e dos lugares fechados. Ele seguia todos os desejos de sua mãe antes de sua morte. Publicara seus versos e até fazia companhia aos seus pais, durante sua eterna ausência. Acabava que ele vivia mais por ela do que por ele mesmo. Seus próprios pais ficaram esquecidos. Justificava para pequena Sofia (como se ela compreendesse essas complicações que os adultos sempre arranjavam uns com os outros) dizendo que eles também preferiam que ele ficasse longe. Que nunca concordaram com seu casamento, e que eram dois "caretas" (Sofia ria) de marca maior, e que não aprovavam seu estilo de vida.
Sofia se divertia em silêncio, inventado em sua cabeça seus avós paternos os quais nunca chegaria a conhecer. Um casal de velhos loucos que destruíam as flores, quebravam bicicletas, e proibiam as crianças de mascarem chicletes. Tudo isso com olhos vesgos, boca torta, uma porção de verrugas na pele e sorrisos altos e assustadores. É melhor mesmo que papai se mantenha longe deles, pensava.
Sofia já sabia algumas palavras, e cada dia aprendia algo novo. Mas sofria. Não havia nada mais difícil para ela do que compreender as letras. Ela queria escrever cada palavra do jeito mais bonito. E sempre que a repreendiam, chorava para seu pai com um complexo de inferioridade que nenhuma outra criança jamais deveria experimentar. Papai então resolveu ajudá-la. Afinal, como uma filha de dois poetas poderia não se dar bem com palavras? Aquilo não estava certo, dizia ele.
-Diga, Sofia, o que sabe sobre acentos?
Ela olhava para seu pai com uma resposta presa nos lábios, com medo de errar.
-Sofia, me diz, você sabe desse acento aqui?
E desenhou um acento agudo num papel em branco. Ela fez que sim com a cabeça.
-Então, em qual palavra você coloca esse desenho da linha torta?
-Água.
-Sim! Viu só. Vou te ensinar mais algumas palavras acentuadas, tudo bem?
Ela então só concordava com a cabeça. Ele começou a escrever algumas palavras no papel: água, árvore, mamãe, pássaro, nenê, sábado, maçã, pêssego, idéia. Deu o papel pra ela e deixou que ela ficasse lendo e relendo. De repente, resolveu falar algo.
-Então, o que achou das palavras?
Sorrindo, Sofia disse que gostou.
-É, Sofi, pensa só... os acentos servem como pequenos enfeites às palavras.
Ela encontrou então o que precisava: uma forma de enfeitar as palavras. Mais liberdade, acreditava. Outras aulas foram dadas, do mesmo modo, pelo seu pai. Ele era um herói, claro. Tão facilmente ele lhe acordava para o lado mágico das palavras, que nem as correções da professora a chateavam mais. Ele era lindo, porque nunca deixaria mamãe desaparecer, porque colhia flores pra Sofia quase sempre, porque a ensinara a andar de bicicleta, porque ele a ajudou a dar sua primeira estrelinha, porque ele fazia tudo desse jeito mágico e fácil que tanto agradava Sofia.
Um dia, sua professora pediu pras crianças que escrevessem alguma coisa sobre alguém da família. Sofia não tinha dúvidas que ia escrever sobre seu pai. Escreveu então, entre palavras tortas e erros perdoáveis: "Papái ele merece todos os asentos do mundo"

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

D. Vontade e d. Lágrima

Um belo dia, a Vontade de Chorar se separou da Lágrima Real. O problema era a saudade que a dona Vontade sentia da dona Lágrima. Quanto mais tempo dona Lágrima ficava longe, mais dona Vontade suspirava de solidão, e gritava por Lágrima em todo lugar. A Lágrima não vinha. Apenas vez ou outra resolvia fazer uma ligação curta pra casa. Mas essas ligações curtíssimas não acalmavam dona Vontade, que ficava ainda mais aflita. "O que acontece comigo, que não consigo recuperar minha companheira que outrora fora tão fiel a mim?"
Pobre dona Vontade...

E o pior é que agora preciso ficar suportando suas lamúrias dentro de mim, e sofro junto. Mas relaxe, Vontade, imagino que eu não vá te largar tão cedo.

Aos pés do espelho.


Deixe-me fingir minha sanidade. Não tem consciência alguma do que me fez, não é mesmo? Você, com essas ilusões carregadas de realidade... Você, que me enganou. Como um cego que cai num buraco, não podia enxergar suas falsidades, tinha certeza que ali havia mais que vão. Mas não. Não. E agora, ainda reclama quando te olho no rosto e digo que não lhe quero mais ao meu lado - quando ambas sabemos que isso não passa de uma tentativa estúpida de imitar você? Deixe-me fazer do jeito que quiser, deixe-me fingir que você não está mais em mim. Pois não te quero. Você me lembra pessoas que não gosto. A obviedade as vezes me faz pensar que, perto de você, me tornarei uma delas. Fria e esquecida. Largue de mim pois já percebi que você não presta.

Respira e solta.

Chora, encolhida.

Volta-se novamente ao espelho


Porque choras comigo?